1 de abr. de 2011

MUBE ÀS ESCURAS

Creio que sempre admirei a força de Affonso Eduardo Reidy, Roberto Burle Marx, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas. Mas sem esquecer, naturalmente, as minhas memórias de infância: tanta ventania, tantas águas, a Bacia do Prata, a Bacia amazônica, oito mil quilômetros de costa, navios etc.

Paulo Mendes da Rocha [1]


Aproximação
A primeira vez que cheguei estava deserto. As barracas que (criminosamente) permanecem sob o vão ainda que não seja dia de feira também vazias. “Por onde entramos?”, me perguntaram. Mesmo não sabendo, fomos levados à entrada como a água encontra o caminho do ralo numa banheira.

O caminho revelou uma complexa paisagem, cheia de níveis, escadas, rampas, guarda-corpos, vazios, espelhos d’água.

Próximo ao maior dos espelhos d'água – cujo perímetro é perto da divisa do terreno, e por isso é mar (de horizonte semi-infinito) – surgia a proa de um navio, que se debruçava sobre a cota mais baixa do terreno.


Já no nível mais baixo, era a lateral da proa que indicava, por fim, a entrada. Na porta, a surpresa: o edifício do museu esteve sempre ali, escondido nos níveis. Eles eram o museu. Ou melhor: o museu, também cheio de níveis ligados por rampas e inclinações no piso, formava a paisagem de cima.

Penumbra
Neste dia, o museu estava vazio também. Nenhuma exposição. Mesmo com as luzes apagadas, me aventurei porta adentro. Ninguém me impediu. Pouco antes de não conseguir enxergar mais nada, uma claraboia surgiu por ali, quebrando a escuridão. Em dias normais, provavelmente haveria embaixo dela uma obra de maior destaque.

Me perguntei se alguma vez Paulo Mendes da Rocha imaginou o museu assim, apagado. E seus visitantes vagando pela escuridão até, de repente, encontrarem uma dessas claraboias-guias. Voltariam a vagar cegamente até encontrar outra (e assim sucessivamente, até o fim).


Pós-penumbra
Na volta, tendo cruzado a porta de saída, de novo o deserto (que, agora sabia, possuía rio, navio e mar). E a claridade, refletida no concreto do piso e da construção (e desconfortável para os olhos pós-penumbra), os faria lembrar daquele lampejo de luz que avistaram no subsolo.

Neste percurso, pareceu-me que o arquiteto concebeu seu projeto traçando, num espaço tridimensional, diversas linhas quebradas que se cruzam e se completam.

E pensei no detalhe. Não aquele construtivo, que mostra como a cobertura consegue vencer tamanho vão livre, mas o detalhe que “usamos para para enfocar, para gravar uma impressão, para lembrar”, como diz o crítico literário James Wood [2]. O detalhe ao qual, por algum motivo, nos prendemos, e que nos ensina a notar melhor a vida – que é cheia de detalhes, “mas de maneira amorfa”, completa o teórico.

Mesmo ofuscado na volta, aquela proa me fez lembrar das diversas proas espalhadas pela cidade (esses desníveis de São Paulo que poucos aproveitam, poucos se debruçam sobre eles).

Lembrei que às vezes não precisamos mesmo de setas, palavras, totens, ou indicações tão claras. E do prazer de descobrir, por si só, uma construção.

Vi ainda a delicadeza de um fino guarda-corpo metálico envolvendo aquela sólida construção de concreto. E acho que isso prescinde de adjetivos.

foto © Nelson Kon


notas
[1] Rosa Artigas (org.), Paulo Mendes da Rocha – vol. 2 (projetos de 1999 a 2006). São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[2] James Wood, Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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