15 de jun. de 2011

KOLUMBA – ZUMTHOR

por Francesco Perrotta Bosch

"Nas vésperas da Páscoa, estive em Colônia, na Alemanha. Não podia deixar de ver dois museus: o Ludwig, que tem a melhor coleção de arte pós-anos 1960 da Europa, e o Kolumba, do Peter Zumthor. O Kolumba foi, junto das Villas Corbusianas (La Roche e Savoye), um dos edifícios que mais me emocionou nestes últimos quatro meses. O termo atmosfera, de fato, justifica o projeto de lugar criado por Zumthor. O que há de comum entre os três projetos arquitetônicos é o percurso (ah, promenade architecturale!): não é uma simples sucessão de aposentos.

Acessamos pela linda recepção, em que até o guarda-volumes é um móvel de madeira sutilmente – mas incrivelmente – detalhado. Neste espaço, temos três opções: uma grande porta de vidro faz do jardim – de pedrisco branco, com poucos bancos e árvores, e tudo encerrado por seu muro – uma cena magnificamente simples, um portão de dimensão e tratamento industrial dá acesso às ruínas no rés-do-chão e a escada que leva às salas de exposição.

Acessando o portão, nos deparamos com uma sala de altíssimo pé-direito – a escala é de um galpão – que protege as ruínas da antiga igreja destruída na Segunda Guerra Mundial. O que se destaca, primeiramente, é um elemento que já é protagonista na fachada: o bloco acinzentado. Este bloco, observado de forma unitária, é extremamente expressivo sem ser gritante. E dentro deste grande salão, observamos suas duas grandes qualidades. A primeira é que Zumthor não protege toda a ruína em uma redoma, pois faz com que parte da ruína seja parte da redoma. Ele assenta esses tijolos acinzentados e, por conseqüência, toda a fachada sobre o muro em ruínas da antiga edificação. O ato de não protegê-las totalmente serve para que elas não fiquem escondidas da cidade. Para que a cidade não as esqueça. Um tema recorrente na Alemanha – o museu não deve esconder as feridas da Segunda Guerra, você não precisa pagar o bilhete de entrada para ver aquelas tristes marcas da história.












A segunda qualidade do bloco é que apesar de serem de dimensões muito semelhantes, eles não são dispostos e assentados sempre da mesma forma. Ao deslocá-los e separá-los algumas vezes, Zumthor cria pequenas entradas de luz, em um efeito semelhante ao de um cobogó, mas que se diferencia deste pois não há um elemento vazado especifico e diferente do resto do muro. A imagem dramática de raios de luz – chiaroscuro – que seguem em direções distintas é gerada por sutis deslocamentos de um simples bloco de alvenaria. É tanto feito por tão pouco.

Outro elemento notável neste grande salão são pilares esguios dispostos não numa malha modular, mas numa busca por pequenos vazios no solo entre fragmentos da antiga igreja, produzindo um ritmo variável como uma dança. Dança dos frágeis pilares que sustentam o peso do teto, do abrigo.

O último ponto que contribui para a atmosfera criada por Zumthor é um sutil jogo de contrastes. Tênues diferenças entre o novo e o antigo. Diferenciações de tato entre os velhos blocos de pedra, os pequenos blocos de alvenaria e o concreto muito liso dos pilares e teto. O caminho de madeira sobre o solo do antigo templo. A luminosidade intimista vinda dos raios de luz que passam entre os blocos deslocados faz com que a percepção dos contrastes ocorra de maneira mais delicada.












Mas era necessário voltar à sala de acesso e começar um segundo percurso pelas extensas escadas, estreitas porém generosas em seu pé-direito. A distância da junta entre o piso e a parede é o detalhe – a medida – perfeito. É muito belo quando o acesso não é grandioso por seu tamanho.

Ao acessar as salas de exposição, o tratamento das superfícies muda. Não é usado o mesmo artifício do grande salão do rés-do-chão em que um único material (o bloco acinzentado) está exposto na fachada e no espaço interno. Existe uma outra camada que se contrapõe à suave rudeza do bloco exterior. Esta camada varia levemente de sala a sala: por vezes, ela é mais áspera, em outros espaços é mais lisa. A variação se dá entre as salas que compõem o percurso principal do museu e os espaços anexos a esse. Existe algo de incomum na unidade dada ao tratamento de piso, parede e teto. Todo o detalhe é pensado de forma minuciosa, porém simples.












Neste percurso, um jogo de sombra e luz, escuro e claro, frio e quente se alterna a cada espaço. As aberturas que banham algumas salas com luz – criando um chiaroscuro não tão dramático como o do deslocamento de blocos do rés-do-chão – chamam muito a atenção por três aspectos. Elas são sempre posicionadas de maneira estratégica de acordo com a vista da cidade que se deseja proporcionar. Por exemplo, faz parte do percurso do museu admirar um dos melhores ângulos da majestosa Catedral de Colônia e sua relação de proporção com a cidade ao redor.

O segundo aspecto é com relação ao detalhamento desses grandes panos de vidro sempre com a altura equivalente ao pé-direito: o caixilho que estrutura o vidro não é aparente, ele é fixado na superfície da fachada. Para quem está dentro, a sensação é de perfeita continuidade entre exterior e interior. Não há indícios do caixilho. Não há indícios de barreira.











O último aspecto diz respeito igualmente à disposição dessas aberturas. Na planta, estas grandes janelas são posicionadas ao lado da parte mais alta da escada. Isso faz com que o ato de subir estes degraus seja algo sagrado. Você deixa uma sala escura e sobe as escadas para um lugar indefinido, um clarão de luz. Não posso ter certeza se existe o céu ou algo do tipo, mas caso haja, acessá-lo deve ser como subir as escadas que Zumthor projetou para o Kolumba.

















Como na La Roche de Corbusier, Zumthor não faz um percurso disciplinado e retilíneo. Criam-se espaços com uma extrema simplicidade gerada por um rico pensamento nos detalhes. Faz-se um percurso sutil, sem excessos formais, preocupado em promover sensações. Procuro palavras para descrever, mas é difícil relatar essas atmosferas que Peter Zumthor cria em Colônia. Plantas, cortes, fachadas, croquis, fotos são incapazes de retratar o que é estar em uma obra de arquitetura como esta."


5 de jun. de 2011

OS 70% DA CASA (E O QUE FALTOU)

Visitar residências “de arquitetura assinada”, mas ainda utilizadas como moradia, é o que tenho me proposto ultimamente. Quando se trata de casa projetada e previamente habitada pelo Vilanova Artigas, a coisa ganha um peso enorme.

Ao entrarmos, não me vendo com a câmera nas mãos, o dono da casa se espantou: “Você não trouxe?”. Sim, estava comigo, era o celular mesmo. Descobrindo isso, me instou a tirar a “foto clássica”, aquela “que todo mundo tira”. Preferia antes percorrer um pouco os espaços da casa mas, de qualquer modo, coloquei-me na posição determinada – em cima da raiz de uma árvore – para fazer o clique. Eis o resultado.













Como se vê, o sol da manhã aparecia em raios filtrados pelas nuvens. Entramos, guiados pela inclinação da cobertura (no ponto mais baixo fica a porta de entrada). “Daqui, você vê 70% da casa”, disse-me o proprietário, do meio da sala. Minha visita teve de ser rápida; acho que durou no máximo quinze minutos. De fato, essa rapidez e essa clareza (o percentual que podia ser apreendido de uma só vez era mesmo grande) diziam muito a respeito de certo ideal moderno, herança bem presente aqui. A triangulação entre sala, varanda e estúdio (acima dos outros) é perfeita e não deixa dúvidas.

Antes que a visita acabasse, contudo, subi ao estúdio e dali tive a melhor visão de todas. Em um só corredor, a casa: estúdio, escada, sala, beira da cozinha e portas dos quartos. Estes últimos não estavam nos 70%. Pedi para ir até eles; cozinha, tudo bem, mas rapidinho pois estava bagunçada. Quartos, não; filho dormindo ainda.

















Volto aos raios de sol filtrados pelas nuvens, de fora. Setenta porcento de claridade. Mas, e os outros trinta que não passavam pelo filtro da visita? A casa ficou menos moderna, assim. Menos clara, mais misteriosa.

Foi o Jacques Tati que caricaturou a casa moderna, em Mon Oncle. No livro homônimo, de Jean-Claude Carrière (inspirado no filme), o narrador é o menino, sobrinho do monsieur Hulot, cujos pais adquirem a casa do futuro:

“Minha mãe e a casa dela... Uma casa que não tinha segredos para ninguém, que era visitada feito um museu, ou como uma feira moderna. Às vezes eu me pergunto se as linhas retas que nos rodeiam não endurecem o nosso coração.” [1]

As frases afiadas não ferem apenas o movimento moderno, mas também a mim, visitante e escrevente. Se percorria a casa como museu, era hora de ir mesmo, quinze minutos bastavam. Aqueles dois ambientes que permaneceram ocultos me diziam: “Vá com calma, isso daqui não é uma exposição. Tem louça suja, gente dormindo”. Se sonhava com linhas retas ou curvilíneas, não sei. Esta casa, diferente da outra, mantinha os seus segredos como quem tenta manter um posto na guerra. E resiste.


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[1] Jean-Claude Carrière, Meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009.