30 de set. de 2011

ASTRONAUTAS EM ÍTACA

Indo para o Museu da Casa Brasileira ou simplesmente saindo de algum restaurante no Itaim, há quem note um objeto curioso no horizonte edificado: uma construção em forma de bola. Mas eu nunca imaginaria que aquela esfera é uma casa em constante transformação, que guarda em si uma história própria e longuíssima. Digna de livro, na opinião de Hans Ulrich Obrist que, junto com Rem Koolhaas, visitou a casa recentemente. O arquiteto holandês ainda chegou a afirmar que aquela tinha sido a experiência arquitetônica mais forte que tivera nos últimos dez anos.

Tal livro poderia começar com a história de um arquiteto que estava incomodado por fazer apenas “arquitetura escultórea” e decide fechar o próprio escritório para se dedicar a um projeto apenas: as casas-bola, concebidas para existirem como um sistema de casas-geminadas formando um edifício – o qual, pelo espaço entre as esferas, conferiria transparência no espaço construído da cidade. Isso foi o que Eduardo Longo me disse.

De forma extremamente gentil, com perspicácia e – por que não – muita coragem, ele me contou que antes da Bola já tinha a parte de baixo de sua residência-escritório. Nela, fez experimentos de liberar o térreo, tornando-o uma passagem entre as duas ruas paralelas (ficou assim por quinze anos!), mais tarde uma espécie de galeria com lojas e restaurantes, e hoje sedia a escola de informática de seu filho. Por fim, resolveu construir o que seria apenas um protótipo: “Eu achava que seria um velho milionário fazendo casas-bola pelo mundo”.














“Gosto muito de construir”, confessou também ele, e é claro que eu já tinha percebido. Fiquei realmente emocionado com isso: sua casa é seu espaço de experimentação, ele constrói, reconstrói, acrescenta, derruba. Mais recentemente comprou um segundo terreno, que chega até a terceira rua da quadra, onde criou um “jardim suspenso” com um espelho d’água (a diversão dos netos) – o qual, como tudo que já fez, envolve uma projeção numa escala maior. Longo queria que os estabelecimentos vizinhos investissem em estruturas assim também, conformando uma rede de jardins suspensos que seriam conectados por passarelas elevadas (ele inclusive já deixou seu trecho construído).

“Naquela época” (isto é, quando a bola foi construída), “o homem tinha acabado de pisar na Lua. Achei que isso fosse mudar completamente a arquitetura.” Com seu andar firme e ao mesmo tempo flutuante, me mostrou os espaços da casa-bola em si, e o que vi era uma verdadeira paisagem lunar, cheia de buracos dando forma a cômodos inteiros, pias, vasos sanitários, geladeira e armários.

Para finalizar a estrutura da cama de casal, disse-me, ele próprio torceu o ferro, ajustando-o melhor ao tamanho do colchão e do quarto exíguo. Foi então que percebi: embora a intenção inicial fosse fazer uma casa pré-fabricada, modelo que (mesmo de dimensões menores que o projeto inicial) seria reproduzido, aquela é uma casa, também, feita ao modo de um joão-de-barro.

Não à toa seu interior é tão parecido com a casa do artista uruguaio Carlos Páez Vilaró, em Punta Ballena. Diz-se que ele a foi construindo aos poucos, assumindo a semelhança com o procedimento do tal pássaro. Não sendo arquiteto, ia moldando com as próprias mãos a massa da qual a casa é feita, conforme crescia a família e apareciam as necessidades. E dava nomes aos ambientes: “costanera para mi hermano Miguel”, “sala Pablo Neruda” etc.


















O interior da casa-bola também se parece àquele das casas mediterrâneas na Grécia; mas aqui não há encostas nem mar onde se debruçar. Soube que seu exterior foi de diversas cores: inicialmente azul para mimetizar com o céu (“a ideia era que a arquitetura desaparecesse”), depois branca com o escorrega vermelho (“quando comecei a envelhecer, esse era eu de cabelos brancos com a língua para fora”) e agora está num tom prateado. Eduardo me disse que, após sua residência, não fez nada “tão brilhante” quanto ela, em todas suas perspectivas, como casa e como cidade que propõe.

Essa cidade utópica que de certa forma Longo imaginou lembra Ítaca, imortalizada no poema homônimo de Konstantinos Kaváfis. Ítaca é a cidade da utopia, para a qual se viaja continuamente, sem nunca se chegar. Para o poeta, contudo, isso não representa um problema, pois o que importa é a viagem em si:

"Tem todo tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim,
Rico de quanto ganhaste no caminho,
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
E agora sabes o que significam Ítacas." [1]

Se o projeto maior dos edifícios e da cidade-bola permaneceu na vontade, a resposta do experiente Longo é morar em sua própria utopia que, tal qual Ítaca, como busca, torna-se um lugar em si: sua casa, em última instância, moldada e transformada ao longo dos anos.















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*A Casa-Bola (São Paulo, 1978) é projeto de Eduardo Longo.

[1] Konstantinos Kaváfis, Poemas [trad. José Paulo Paes]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, pp. 118-19.

26 de set. de 2011

FAXINA

Um porteiro eletrônico ao lado do trilho do bonde, na rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa: ali, sob um sol muito quente, esperei alguns minutos até que o portão fosse aberto. “É só subir a rampa até o fim?”, perguntei, e parei o carro ao lado de outro que vi, imaginando ser ali a entrada principal. “Não, pode subir mais, faz a volta por trás!” gritou alguém lá de cima. A subida traçava um giro pelo terreno e pela casa.

Era dia de faxina e eu não sabia. Na cozinha, entre baldes de água com sabão, disseram-nos para subirmos e falarmos com a Andrea: foi ela que enfim nos recebeu, a esbaforida (e simpaticíssima) empregada-chefe da casa, pedindo mil desculpas pela bagunça e dizendo que se soubesse antes teria avisado (sexta à tarde não é um bom dia, limpam tudo antes que chegue o fim de semana). Eu disse que não tinha o menor problema, não queríamos atrapalhar, e o que veio a seguir foi inacreditável.

Na sala, o maior cômodo da casa, com aquela vista impressionante do Rio (para a Baía de Guanabara, numa ponta, e para o centro da cidade mais a Ponte Rio-Niterói, na outra), ela nos fez uma verdadeira apresentação da casa. Ali estava o escritório, bagunçadíssimo pois virara depósito temporário dos pertences de algum parente do dono (para nós isso significaria acesso impedido), e do outro lado o “bloco” dos quartos, lá embaixo a piscina, a casa do caseiro etc. Nosso horário semi-indevido também não nos permitiria conhecer os quartos, pois algumas filhas já tinham chegado.

Eu girava confuso com as explicações e comentários da Andrea que, talvez para se desculpar pela impossibilidade de me mostrar os quartos, trouxe umas quatro revistas, nacionais e estrangeiras. “Aqui você pode ver tudo”, e foi explicando que os “brises de madeira” corriam lateralmente, havia um corredor unindo todos os quartos, “a laje [era] dupla para ficar mais fresco”. Ela usava com precisão alguns termos que, sinceramente, eu achava que só arquitetos ou estudantes de arquitetura conheciam.

“Você é aluno do Angelo? Conhece ele?”: no fim da breve introdução ela revelou que conhecia bem o arquiteto. Esqueci de dizer: o começo da conversa tinha ficado a meu cargo, com a pergunta de como era trabalhar numa casa daquelas. Mal sabia eu que, depois de dizer que era ótimo mas tinha muita poeira, calor extremo no verão e frio intenso no inverno, viria aquele tour arquitetônico, ainda na sala, que terminou com a informação de que quase ninguém ficava naquele cômodo – para ver TV era preciso colocar um pano preto enorme nos vidros.

A esta altura eu nem precisaria ter perguntado se ela estava acostumada a receber visitas interessadas na arquitetura da casa. “Incomum é serem só duas pessoas, outro dia veio um grupo de 79 alunos estrangeiros!” Começamos a percorrer as áreas visitáveis. A piscina também acumulava muito pó (imagine, tinha sido limpa na manhã do mesmo dia!); os terraços do bloco dos quartos e do escritório, quase nunca usados; a madeira da porta que resistia a sol e chuva; o belo jardim por entre os vazios da casa (depois que saí soube ser do Chacel), que precisou ser cercado por um arame elétrico, para impedir o cachorro de destruir as plantas.

Terminado o tour, fomos andando por nossa conta. Eu já não estava mais confuso como antes, agora a casa tinha assentado em mim e compreendi. Tendo seus “setores” separados em blocos ou partes, ela vai se acomodando pelo terreno, como um gato faz em qualquer superfície que escolha para tirar um cochilo. No ponto mais alto do morro de Santa Teresa, os quartos encontraram um lugar, o escritório outro, a cozinha unindo tudo e a sala como um mirante para a paisagem e para a própria casa, vigiando-a continuamente.














Tudo o que a Andrea – a quem dedico este texto – disse, e a forma como o fez, tudo o que vi, revelam uma grande contradição. Rendo-me à elegância extrema desta casa, como aqueles jovens poetas mexicanos rendiam-se e reuniam-se ao redor de Auxilio Lacouture, a personagem-narradora de Roberto Bolaño em Amuleto: mesmo sabendo que ela esconde por trás da mão um sorriso desfigurado. Auxilio, que quando falava colocava uma mão em frente à própria boca, autointitulava-se a mãe da poesia mexicana, dando conselhos, acolhendo e trabalhando para vários daqueles jovens poetas. Ela ficou famosa por ter resistido à invasão de tropas do exército no campus da Universidade Nacional Autônoma do México, sozinha, sentada dentro do banheiro.

A Casa em Santa Teresa congrega em si uma tradição paulista específica de projeto, da qual muito tem se falado no meio acadêmico carioca (que carece de escola, tradição de prancheta), ultimamente. Ela resistiu e por isso nos aconselha e auxilia, mas esconde por trás das mãos aquilo que as fotos oficiais não mostram: a lixeira laranja próxima à cozinha; o pano preto para cobrir os vidros da sala; o varal preso no pino de aço (espécie de conjunto parafuso-rosca gigante) embaixo do bloco dos quartos; a cortina de box necessária para vedar o vento frio que deve passar pelo painel de madeira, no banheiro do caseiro.


























O livro de Bolaño termina com um longo sonho de Auxilio, no qual ela vê jovens latino-americanos descendo por um vale, que acaba num precipício. Ela sabe que eles cairão, mas ainda assim os ouve cantar. Desço pela rampa de volta à Santa Teresa, depois a Glória e o Aterro do Flamengo, até chegar de volta em casa. Ou teria sido um sonho?



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* A Casa em Santa Teresa (2008) é projeto de Angelo Bucci | SPBR Arquitetos

23 de ago. de 2011

O VIDRO PESADO ou COMO DAR LEVEZA A UMA CAIXA DE VIDRO

















Olhando do portão de entrada, podem pensar: “ah, uma arquitetura moderna”. Ou, vendo apenas a planta baixa num livro, constatar: “vejam só, planta livre e paredes de vidro para o exterior – miesianamente perfeito, corbusianamente correto”. Mas quem sobe pela rampa e vê os pedaços de azulejos cortados e colados ao piso, quem chega no térreo e, sob o clássico pilotis, percebe o chão de placas irregulares e desencontradas, as raízes da árvore que cresce no meio do vazio central se espalhando e tomando os espaços – quem vê esse contraste construção-térreo logo percebe que não é mais um Mies, tampouco uma réplica de um Corbusier.

















Se subir pela instável escada metálica e adentrar a porta (de vidro), não terá mais dúvidas. Tal qual as raízes da árvore lá embaixo, crescem pela planta livre (e enorme) da sala objetos nordestinos, quadros da renascença, esculturas sacras, pedaços de cenários de teatro, móveis trazidos dos mais diversos antiquários, de madeira escura e detalhes trabalhadíssimos. Grudados também a esta fina teia que a aranha-Lina teceu, outros móveis (mesa de jantar, mesinhas de centro, cadeiras e poltronas) projetados especificamente para a casa por ela, nunca reproduzidos, num ato de quem diz: esta casa é minha, aqui fico, aqui construo, trabalho, esculpo, dou corda ao mundo.

















Na foto histórica, descubro que as paredes transparentes revelavam uma São Paulo sem construções e a vegetação ainda baixa do quintal. Cada planta foi escolhida a dedo e plantada pela própria Lina. Hoje, o tombamento impede a poda e a vista é para as árvores, somente – a cidade lá atrás, que também cresceu sem poda, permanece oculta. Minha vontade era fechar as cortinas, acender as arandelas e luminárias de piso (o teto liso, sem intervenções luminosas) e ter olhos apenas para aquela atmosfera que a Lina criou para si. Ser uma das inúmeras visitas que o casal recebia, fosse para adquirir uma obra de arte (Pietro também era galerista), fosse para um coquetel qualquer.

















Uma das Seis propostas para o próximo milênio de Italo Calvino foi a leveza. “No mais das vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem.” Mas esta leveza não pode ser confundida com tolice, vagueza ou preguiça: “há uma leveza do pensamento, assim como existe, como todos sabem, uma leveza da frivolidade; ou melhor, a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca. [...] A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”. [1]

Calvino – também italiano, como Lina – escreveu isso em 1985, mais de trinta anos depois da construção da Casa de Vidro. Não sei quando o jardim, o térreo, o acúmulo de móveis e objetos começaram a acontecer. Mas parece que, com eles, Lina e Pietro tornavam sua rígida casa – que paradoxo, uma casa de vidro pesada – mais leve. À linguagem e à estrutura modernas, estes elementos retiravam peso.

















O casal Bardi, contaram-me, morou ali até o fim da vida. E Pietro costumava ir andando todo dia para seu trabalho, no Masp – do Morumbi à Paulista, mesmo na terceira idade.

Quem olha de novo para a casa, já de saída, flutua, leve, junto com ela.


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[1] Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 15, 22 e 28.

21 de ago. de 2011

ATMOSFERA: POSSÍVEL VERBETE

Espaço, lugar, acontecimento: muitos termos e teorias já foram construídos para apreender o que é a arquitetura, o construir por excelência, e ler o espaço construído. O conceito de atmosfera tem tomado forma, quase paralelamente, em literatura e arquitetura, e implica várias acepções relativamente distintas. O conjunto a seguir torna-se um possível verbete para os dicionários de arquitetura, feito à maneira de uma colcha de retalhos – no caso, de acepções.


ATMOSFERA:
1. Aquilo que é transmitido, depreendido a partir de uma obra de arquitetura.
2. Ambiente, clima, estados de espírito causados no usuário por um edifício.
3. Tensão que envolve os habitantes de um espaço.
4. Blocos de afectos e perceptos contidos em um ambiente, que podem ser destrinchados e elaborados pelo texto sobre arquitetura.
5. Qualidade “erótica” do espaço, que permite a ao crítico de arquitetura tornar-se uma espécie de coautor também, junto com o arquiteto.
6. Harmonização de um espaço com seu habitante, que pode gerar efeitos de acolhimento, sedução, repulsa etc.
7. Presença, vibração, cercamento com realidades materiais do espaço que têm um impacto físico no corpo humano, e não apenas interpretativo ou intelectual.


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* As acepções acima foram elaboradas a partir da leitura e reflexões sobre escritos de: Peter Zumthor; Walnice Nogueira Galvão; Antonio Candido; Jacques Rancière; Flávio Carneiro; Ignasi de Solà-Morales; Hans Ulrich Gumbrecht. Cf. bibliografia do trabalho.


15 de jun. de 2011

KOLUMBA – ZUMTHOR

por Francesco Perrotta Bosch

"Nas vésperas da Páscoa, estive em Colônia, na Alemanha. Não podia deixar de ver dois museus: o Ludwig, que tem a melhor coleção de arte pós-anos 1960 da Europa, e o Kolumba, do Peter Zumthor. O Kolumba foi, junto das Villas Corbusianas (La Roche e Savoye), um dos edifícios que mais me emocionou nestes últimos quatro meses. O termo atmosfera, de fato, justifica o projeto de lugar criado por Zumthor. O que há de comum entre os três projetos arquitetônicos é o percurso (ah, promenade architecturale!): não é uma simples sucessão de aposentos.

Acessamos pela linda recepção, em que até o guarda-volumes é um móvel de madeira sutilmente – mas incrivelmente – detalhado. Neste espaço, temos três opções: uma grande porta de vidro faz do jardim – de pedrisco branco, com poucos bancos e árvores, e tudo encerrado por seu muro – uma cena magnificamente simples, um portão de dimensão e tratamento industrial dá acesso às ruínas no rés-do-chão e a escada que leva às salas de exposição.

Acessando o portão, nos deparamos com uma sala de altíssimo pé-direito – a escala é de um galpão – que protege as ruínas da antiga igreja destruída na Segunda Guerra Mundial. O que se destaca, primeiramente, é um elemento que já é protagonista na fachada: o bloco acinzentado. Este bloco, observado de forma unitária, é extremamente expressivo sem ser gritante. E dentro deste grande salão, observamos suas duas grandes qualidades. A primeira é que Zumthor não protege toda a ruína em uma redoma, pois faz com que parte da ruína seja parte da redoma. Ele assenta esses tijolos acinzentados e, por conseqüência, toda a fachada sobre o muro em ruínas da antiga edificação. O ato de não protegê-las totalmente serve para que elas não fiquem escondidas da cidade. Para que a cidade não as esqueça. Um tema recorrente na Alemanha – o museu não deve esconder as feridas da Segunda Guerra, você não precisa pagar o bilhete de entrada para ver aquelas tristes marcas da história.












A segunda qualidade do bloco é que apesar de serem de dimensões muito semelhantes, eles não são dispostos e assentados sempre da mesma forma. Ao deslocá-los e separá-los algumas vezes, Zumthor cria pequenas entradas de luz, em um efeito semelhante ao de um cobogó, mas que se diferencia deste pois não há um elemento vazado especifico e diferente do resto do muro. A imagem dramática de raios de luz – chiaroscuro – que seguem em direções distintas é gerada por sutis deslocamentos de um simples bloco de alvenaria. É tanto feito por tão pouco.

Outro elemento notável neste grande salão são pilares esguios dispostos não numa malha modular, mas numa busca por pequenos vazios no solo entre fragmentos da antiga igreja, produzindo um ritmo variável como uma dança. Dança dos frágeis pilares que sustentam o peso do teto, do abrigo.

O último ponto que contribui para a atmosfera criada por Zumthor é um sutil jogo de contrastes. Tênues diferenças entre o novo e o antigo. Diferenciações de tato entre os velhos blocos de pedra, os pequenos blocos de alvenaria e o concreto muito liso dos pilares e teto. O caminho de madeira sobre o solo do antigo templo. A luminosidade intimista vinda dos raios de luz que passam entre os blocos deslocados faz com que a percepção dos contrastes ocorra de maneira mais delicada.












Mas era necessário voltar à sala de acesso e começar um segundo percurso pelas extensas escadas, estreitas porém generosas em seu pé-direito. A distância da junta entre o piso e a parede é o detalhe – a medida – perfeito. É muito belo quando o acesso não é grandioso por seu tamanho.

Ao acessar as salas de exposição, o tratamento das superfícies muda. Não é usado o mesmo artifício do grande salão do rés-do-chão em que um único material (o bloco acinzentado) está exposto na fachada e no espaço interno. Existe uma outra camada que se contrapõe à suave rudeza do bloco exterior. Esta camada varia levemente de sala a sala: por vezes, ela é mais áspera, em outros espaços é mais lisa. A variação se dá entre as salas que compõem o percurso principal do museu e os espaços anexos a esse. Existe algo de incomum na unidade dada ao tratamento de piso, parede e teto. Todo o detalhe é pensado de forma minuciosa, porém simples.












Neste percurso, um jogo de sombra e luz, escuro e claro, frio e quente se alterna a cada espaço. As aberturas que banham algumas salas com luz – criando um chiaroscuro não tão dramático como o do deslocamento de blocos do rés-do-chão – chamam muito a atenção por três aspectos. Elas são sempre posicionadas de maneira estratégica de acordo com a vista da cidade que se deseja proporcionar. Por exemplo, faz parte do percurso do museu admirar um dos melhores ângulos da majestosa Catedral de Colônia e sua relação de proporção com a cidade ao redor.

O segundo aspecto é com relação ao detalhamento desses grandes panos de vidro sempre com a altura equivalente ao pé-direito: o caixilho que estrutura o vidro não é aparente, ele é fixado na superfície da fachada. Para quem está dentro, a sensação é de perfeita continuidade entre exterior e interior. Não há indícios do caixilho. Não há indícios de barreira.











O último aspecto diz respeito igualmente à disposição dessas aberturas. Na planta, estas grandes janelas são posicionadas ao lado da parte mais alta da escada. Isso faz com que o ato de subir estes degraus seja algo sagrado. Você deixa uma sala escura e sobe as escadas para um lugar indefinido, um clarão de luz. Não posso ter certeza se existe o céu ou algo do tipo, mas caso haja, acessá-lo deve ser como subir as escadas que Zumthor projetou para o Kolumba.

















Como na La Roche de Corbusier, Zumthor não faz um percurso disciplinado e retilíneo. Criam-se espaços com uma extrema simplicidade gerada por um rico pensamento nos detalhes. Faz-se um percurso sutil, sem excessos formais, preocupado em promover sensações. Procuro palavras para descrever, mas é difícil relatar essas atmosferas que Peter Zumthor cria em Colônia. Plantas, cortes, fachadas, croquis, fotos são incapazes de retratar o que é estar em uma obra de arquitetura como esta."


5 de jun. de 2011

OS 70% DA CASA (E O QUE FALTOU)

Visitar residências “de arquitetura assinada”, mas ainda utilizadas como moradia, é o que tenho me proposto ultimamente. Quando se trata de casa projetada e previamente habitada pelo Vilanova Artigas, a coisa ganha um peso enorme.

Ao entrarmos, não me vendo com a câmera nas mãos, o dono da casa se espantou: “Você não trouxe?”. Sim, estava comigo, era o celular mesmo. Descobrindo isso, me instou a tirar a “foto clássica”, aquela “que todo mundo tira”. Preferia antes percorrer um pouco os espaços da casa mas, de qualquer modo, coloquei-me na posição determinada – em cima da raiz de uma árvore – para fazer o clique. Eis o resultado.













Como se vê, o sol da manhã aparecia em raios filtrados pelas nuvens. Entramos, guiados pela inclinação da cobertura (no ponto mais baixo fica a porta de entrada). “Daqui, você vê 70% da casa”, disse-me o proprietário, do meio da sala. Minha visita teve de ser rápida; acho que durou no máximo quinze minutos. De fato, essa rapidez e essa clareza (o percentual que podia ser apreendido de uma só vez era mesmo grande) diziam muito a respeito de certo ideal moderno, herança bem presente aqui. A triangulação entre sala, varanda e estúdio (acima dos outros) é perfeita e não deixa dúvidas.

Antes que a visita acabasse, contudo, subi ao estúdio e dali tive a melhor visão de todas. Em um só corredor, a casa: estúdio, escada, sala, beira da cozinha e portas dos quartos. Estes últimos não estavam nos 70%. Pedi para ir até eles; cozinha, tudo bem, mas rapidinho pois estava bagunçada. Quartos, não; filho dormindo ainda.

















Volto aos raios de sol filtrados pelas nuvens, de fora. Setenta porcento de claridade. Mas, e os outros trinta que não passavam pelo filtro da visita? A casa ficou menos moderna, assim. Menos clara, mais misteriosa.

Foi o Jacques Tati que caricaturou a casa moderna, em Mon Oncle. No livro homônimo, de Jean-Claude Carrière (inspirado no filme), o narrador é o menino, sobrinho do monsieur Hulot, cujos pais adquirem a casa do futuro:

“Minha mãe e a casa dela... Uma casa que não tinha segredos para ninguém, que era visitada feito um museu, ou como uma feira moderna. Às vezes eu me pergunto se as linhas retas que nos rodeiam não endurecem o nosso coração.” [1]

As frases afiadas não ferem apenas o movimento moderno, mas também a mim, visitante e escrevente. Se percorria a casa como museu, era hora de ir mesmo, quinze minutos bastavam. Aqueles dois ambientes que permaneceram ocultos me diziam: “Vá com calma, isso daqui não é uma exposição. Tem louça suja, gente dormindo”. Se sonhava com linhas retas ou curvilíneas, não sei. Esta casa, diferente da outra, mantinha os seus segredos como quem tenta manter um posto na guerra. E resiste.


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[1] Jean-Claude Carrière, Meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

25 de mai. de 2011

DESCALÇO

Chegamos à tarde. Paramos o carro junto ao alto muro de pedra. De baixo eu não vi, não imaginei. Alguns passos por um caminho de terra e, quando percebi, estávamos na sala, e então na cozinha. O Mario Fraga insistiu que tomássemos logo o sorvete de cupuaçu para não derreter. Estava mesmo no ponto. Acho que foi nessa hora que ele colocou Villa-Lobos pra tocar.

Na cozinha devoramos o sorvete comprado na lendária Tacacá do Norte. Das prateleiras-muro-de-contenção o Mario trazia copos, talheres etc. Ali, incrustados no talude de pedra, estavam o fogão, a geladeira industrial, a pia e todos os utensílios. A cozinha, estômago da casa como querem alguns, vivia colada à terra.














A entrada foi sutil por duas razões: a porta de correr de vidro; e o barro. Principalmente o barro: todo o piso estava cheio dele. Não é que estivesse sujo, as marcas são de anos e por sorte nunca saem nas limpezas. Melhor assim.

A casa toca tão delicadamente o terreno que se torna de barro também. Do auge desta constatação – após sair e andar pelo terreno, voltar à casa, sentar na sala-ateliê, ir até a varanda, voltar à sala – senti uma súbita vontade de tirar os sapatos, ficar descalço ali.

A instrução divina para Moisés, antes que ele enfrentasse o faraó e conduzisse toda aquela gente Mar Vermelho afora, foi: “Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é terra santa” [1]. Para o futuro líder do povo judeu, retirar as sandálias significava respeito, sim, mas também era um modo de sentir melhor aquela terra que, agora sabia, era santa.

Guardadas as devidas proporções, acho que ouvi algo parecido. Não prevejo mar vermelho algum pra mim, menos ainda arguições com faraós. Ainda assim, meio sem jeito e sem que ninguem visse, tirei por um momento o chinelo e pisei nas placas manchadas do chão.




















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[1] Êxodo 3, 5.
[2] O projeto da casa-ateliê é de Mario Fraga e Carla Juaçaba.
[3] Fotos retiradas do excelente Entre.

1 de mai. de 2011

EDIFÍCIO ESTRELA

"Eu li – logo vou avisando – que os verbos bin, ou ser, e bauen, construir, eram um só no alemão arcaico. Eu li. Digamos, por uma questão de prudência, que ambos têm apenas a mesma origem etimológica, mas arcaica ainda, ou, enfim, são aparentados de alguma forma distante (no mínimo, têm menos de seis letras e começam com b, e para o leigo isso já implica semelhança que chegue). Sem falar na mistura básica entre ser e estar.

É um carma, uma existência inescapável, dinâmica e mutuamente determinante entre o entorno, a casa e a pessoa. Seja para o marginal sanguinário, cercado de metralhadoras no último barraco do morro, ou para o corrupto federal, peidando dinheiro numa cobertura maravilhosa, o carma vale. Aplica-se ao povo brasileiro, cujos extremos da pirâmide social acabei de citar, mas é sem dúvida um fenômeno humano.

Aparece em conjuntos decorativos, explicitado, ou em pequenos detalhes, nas desimportantes seleções cotidianas, quase imperceptíveis; por exemplo a ordem dos livros numa prateleira. Surge nas sombras, no efeito da lâmpada que acende e apaga, nos propósitos arquitetônicos, nos limites humanos, na filosofia de vida, no espírito da época. É um trânsito sutil, lento e poderoso.

Não por acaso, para mim e Virgílio, todo o bairro de Ipanema nasceu à luz do prédio onde morávamos. Prudente de Moraes, 765, entre Montenegro e Joana Angélica. A cidade e o mundo vieram depois. Não por acaso, também, o Estrela de Ipanema impregnou-me de sua urgência vital. Defendia a linha reta como a melhor maneira de unir dois pontos. Jamais como separadora de planos. [...]

O Estrela de Ipanema também afetou bastante a Virgílio. Chego lá."


[Rodrigo Lacerda, Vista do Rio. São Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 14-15. A referência é ao edifício Estrela de Ipanema, projetado por Paulo Casé em 1970.]


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26 de abr. de 2011

LINA-JOÃO-DE-BARRO (OU: CASA SE CONTROLA?)

O texto “Na Europa a casa do homem ruiu” serve como prelúdio a este. Não sei se a Lina Bo Bardi imaginava que uma casa projetada por ela seria tão frágil e humana também.












Algumas semanas atrás fui visitar uma ruína. Era a casa Valéria P. Cirrell, construída em 1958 por Lina-joão-de-barro para uma amiga. Dava pena o estado em que a encontrei, mas pudera: está desabitada desde o ano passado, quando foi a leilão (lance mínimo: R$ 2,7 milhões). Até agora não apareceu um comprador.

A casa era uma ruína não só pelo aspecto derelito mas pelas inúmeras modificações, acréscimos etc. à planta original. Mas casa se controla? Os sucessivos moradores deveriam preservá-la só porque era de autoria de uma grande arquiteta, ou poderiam mesmo reformar o telhado da edícula que era de zinco e pingava, construir mais um quarto e ampliar a parte de serviços para atender às suas necessidades? A moradora não poderia colocar os cristais que bem entendesse na cobertura, e mesmo fazer um jardim com eles?

Não encontro resposta. Sinto pela originalidade perdida, pela falta de cuidado. Tenho saudades dessa casa em um estado que nunca vi. Gostaria de vê-la habitada, sendo casa. Com pessoas saindo do quarto (terra), pisando na varanda (grama) e depois no deck de madeira (pedras), para então mergulharem na piscina (lago). Subindo e descendo a escada em espiral, acendendo a lareira, olhando lá do mezanino os que ficaram embaixo.

















Como toda ruína, a casa conserva alguns pontos de seu estado original. “Aqui essa parede está do jeito que a Lina fez, colou com as próprias mãos esse azulejo quebrado”, me disse a atual dona.

Fixo minha atenção no azulejo quebrado e, por um instante, esqueço de todo o resto.

















(Ao sair, não por acaso lembro do Leminski: "qualquer caverna habitável tem tido mais atenção do que as ruínas. E, no entanto, a ruína é o sentido de final de tudo, o significado dos quartos de empregada, das privadas de quintal, kitchenettes, apartamentos, palacetes, palácios, castelos, mansões, vilas, palafitas e cabanas" [1].)

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[1] Paulo Leminski, "A nova ruína". Revista Noz, n. 3, 2009.

18 de abr. de 2011

ALMOÇO NO SESC POMPEIA

Como criar esta atmosfera, que se mantém mesmo 34 anos depois?

Restaurante-Choperia (foto de um almoço no dia 26/03/2011)

Outro almoço, 1977

Contação de história na beira do "rio São Francisco" (26/03/2011)

Pescaria no rio, 1977


Ali, Lina levou a cabo a arquitetura do comportamento humano, projetando espaços e neles interferindo, criando contextos e provocando a vida.

Marcelo Ferraz [1]


notas

[1] In Luiz Trigueiros & Marcelo Ferraz (orgs.). Sesc Fábrica da Pompeia. Lisboa:
Blau, 1996.

[2] As imagens de 1977 foram retiradas de Marcelo Ferraz (org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993.

AS ATMOSFERAS DE LINA

O Renato Anelli percebeu que a Lina queria criar atmosferas:

"Quando fui apresentado aos desenhos de projeto do Sesc Pompeia pelo Marcelo Suzuki, no arquivo do Instituto Bardi (o livro Lina Bo Bardi do Instituto só seria publicado em 1993, depois da morte de Lina), fiquei fascinado com o conjunto das suas aquarelas e desenhos. Elas eram pouco precisas para definir a forma exata final, mas antecipavam uma certa atmosfera perceptível na obra concluída e em uso.

A rua interna, a praça coberta e a torre eram repletas de situações que realizavam aquela atmosfera, aquela ambiência antecipada pelas aquarelas. Compareciam também várias figuras povoando o conjunto – a 'flor de mandacaru' na fresta das passarelas era a mais emblemática, mas tinham outras como os dramáticos buracos 'Guerra na Espanha' na torre esportiva, o espelho d’água 'Rio São Francisco', os Totens de Comunicação Visual, as esculturas de comida do Menu do restaurante (várias delas já alteradas, infelizmente). Muita gente fazia uma leitura daquilo como algo pós-moderno, de tanto que contrastava com a arquitetura moderna corrente da época.

Considerei que a atmosfera dessas cenas e a sequência dessas figuras constituem uma espécie de narrativa aberta, cuja fruição se daria pela vivência cotidiana daquela arquitetura. No Sesc Pompeia, a clara intenção dessa narrativa era a de alterar o significado daquele espaço – uma fábrica (lugar de trabalho e disciplina) tornava-se um centro de lazer, o oposto do seu significado original."


[Renato Anelli, "Fábulas edificadas". Revista Noz, n. 2, 2008.]

11 de abr. de 2011

NA EUROPA A CASA DO HOMEM RUIU

Lina Bo Bardi

"A casa do Homem ruiu; na Itália, ao longo da Aurélia e da Emília, na Sicília e na Lombardia, na Provença, na Bretanha; a casa do Homem ruiu na Europa. Não pensávamos que ela fosse desaparecer assim; era muito 'segura', era um 'baluarte', havia alguma coisa mais 'firme' do que a casa? Há anos estava ali, cada ano sofria uma mudança, era a filha que se casava, uma nova geração que vinha, desaparecia a poltrona de veludo com franjas do último Oitocentos e vinha o móvel 'inglês' em mogno e cetim celeste, as lâmpadas de 'opalina' eram substituídas por grandes lampadários de metal dourado; depois, os netos quiseram fazer mudanças, quiseram renovar, segundo aquela nova moda do antigo misturado com o moderno, e o divã Luís Filipe ia muito bem com as lâmpadas modernas de ferro batido laqueadas de branco; também [com] as paredes em cimentite e os dois quadros surrealistas. Certa vez, toda a casa foi transferida para um bairro elegante, para um edifício mais moderno, e foi naquela ocasião que Francisco mandou fazer as grandes cortinas de seda verde amêndoa drapeadas segundo a moda francesa, e os estuques brancos inspirados no barroco; assim, a casa era ligeiramente 'decadente', como disse um arquiteto à la page, mas ia bem, tinha estilo, era muito admirada pelos amigos e uma revista mundana publicou-a. Certo, tinha mudado muito desde os tempos dos avós, cada um lhe havia querido dar o 'seu' toque, mas era sempre a 'nossa casa' e não ousaríamos admitir que pudesse desaparecer assim. Agora, quando relembro nossos zelos em não desmanchar uma prega do drapeado, em não alterar a simetria dos adornos, a nossa preocupação de conservar 'aquele ar' da nossa casa, aquele ar tão 'representativo', parece-me impossível não a rever mais. No ângulo do salão, à esquerda, havia o retrato da vovó; embaixo dele tínhamos mandado fazer um delicado motivo em estuque, quase um brasão, tirado de uma revista; um esculpido que escondia uma delicada luz rósea; era o nosso ângulo preferido, tinha uma vitrola de pele de serpente e um 'bar' arrumado num velho móvel 'Império'. Palavra, nunca imaginei que acabasse assim e, naquela manhã, quando a nossa casa já não existia mais, achei um pedaço de gesso branco raiado, e vi que era uma lasquinha de lâmpada rósea. Mas que estranho, que estranho que nada se visse da nossa casa tão bela, que nada tivesse ficado capaz de distingui-la das outras! Era tudo cinzento, tudo pó, tudo igual aos outros montes cinzentos que também haviam sido casas, mas certamente muito menos bonitas do que a nossa.

Sim, não pensávamos que as casas fossem assim frágeis, assim sutis, assim 'humanas', e que pudessem morrer assim. Foi então, quando esperávamos naqueles momentos de pesadelo, que as casas começassem a ruir que nos apercebemos que elas 'eram humanas', que eram o 'espelho' do homem, que eram 'o homem'. E sentimos também que era culpa nossa se morriam, nós as havíamos erguido para que fossem o espelho do nosso orgulho mais falso, da nossa incompreensão da vida e dos homens, e por culpa nossa ruíam também as pequenas casas sem culpa, as pequenas casas sem luzes róseas e sem drapeados de seda. Foi então, enquanto as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra do homem, que compreendemos que a casa deve ser para a 'vida' do homem, deve servir, deve consolar; e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano; então, compreendemos porque as casas ruíam, e ruíam os estuques, a mise-en-scéne, os cetins, os veludos, as franjas, os brasões; porque, de manhã, tudo era montinhos cinzentos desoladoramente idênticos. Na Itália, as casas ruíram, ao longo das estradas da Itália, nas cidades, as casas ruíram; na França, as casas ruíram, na Inglaterra e na Rússia; na Europa, as casas ruíram. E, pela primeira vez, os homens devem reconstruir as casas, tantas casas no centro das grandes cidades, ao longo das estradas de campo, nos vilarejos; e, pela primeira vez, 'o homem pensa no Homem', reconstrói para o Homem. A guerra destruiu os mitos dos 'monumentos', também na casa, os móveis-monumentos não devem existir mais, também eles, em parte, entram na causa das guerras; os móveis devem 'servir', as cadeiras para sentar, as mesas para comer, as poltronas para ler e repousar, as camas para dormir, e a casa assim não será um lar eterno e terrível, mas uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer.

Na Europa se reconstrói, e as casas são simples, claras, modestas, pela primeira vez no mundo, talvez o homem haja aprendido, e na manhã seguinte àquelas noites chamejantes, sentido, sobre os escombros da sua casa, que a casa é quem a habita, é 'ele mesmo', e tiveram vergonha da sua velha casa como se tivessem mostrado em público as próprias fraquezas e os próprios vícios."


[in Silvana Rubino e Marina Grinover (orgs.), Lina por escrito. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Publicado originalmente em Rio, Rio de Janeiro, n. 92, fev. 1947, pp. 53-55 e 95.]

3 de abr. de 2011

O MURO

Regina Modesto Guimarães

"Tudo naquele jardim tinha sentido. E cada dia um sentido diferente. Assim o muro. Quando é que passou pela nossa cabeça que muro é uma coisa que divide? Muro era uma coisa para a gente escalar. O estupendo da infância é essa capacidade de descobrimento – cansados da nossa altura, sentíamos necessidade daqueles momentos vividos numa outra dimensão. E assim, mais altos que os homens altos, entendíamos os gigantes.

Éramos oito idades, oito temperamentos, o muro estreito. Lá em cima circulava tudo: o medo vencido, o medo invencível, o triunfo do equilíbrio, o malabarismo, a macaquice. Mas o ponto máximo de nossa felicidade era espiar para a casa do vizinho. ‘Meninos, vocês levam um tombo!’ Nós dizíamos: ‘Bom dia!’. Bom dia era uma coisa que acalmava o bom velhinho; virávamos as pernas para o lado de lá e aprosa começava. Seu Rezende era parte do nosso mundo, colônia nossa. Sempre com aquele roupão pesado, o gorro, os chinelos e a bengala. Vivia flanando no jardim e sempre dava um jeito de nos presentear com uma fruta, uma flor ou uma bala.

No meio das nossas brincadeiras incansáveis, a hora do muro era uma horinha sagrada: ‘Do portão pra dentro!’. Mamãe não admitia que ficássemos na rua daí a nossa atração pelo muro – era um pouco do lado de lá que vinha até nós. Oh! Crianças crescidas nas calçadas, reclamem um jardim! Há um mundo de poesia escondido na terra, nas folhagens, nas flores! Reclamem o direito de participação.

Nós não aprendíamos as coisas, tudo era achado, encontrado, revelado. Assim, certa vez, de cima do muro, achamos a morte na casa do vizinho: uma janela grande, aberta – janela que, sempre fechada, nunca nos tinha contado nada – ela nos mostrou o que não tínhamos visto ainda: uma pessoa morta.

O arrepio em silêncio, que imobilizou de repente a nossa curiosidade, a mistura de respeito e medo, o engasgo que foi subindo na forma de vontade de chorar – haverá no coração dessas crianças de hoje, alimentadas de revólveres de mentira, momentos de plenitude assim?

Olhamos as coroas espalhadas pela varanda, de novo olhamos, intrigados, seu Rezende deitado, quieto, morto. Estávamos de posse de um segredo, tínhamos mergulhado dentro de um mistério. Descemos o muro com cuidado, escorregando. E aquele dia foi triste."


[texto da cunhada de Lucio Costa, incluído por ele em seu Registro de uma vivência (Empresa das Artes, 1995, p. 580)]

1 de abr. de 2011

MUBE ÀS ESCURAS

Creio que sempre admirei a força de Affonso Eduardo Reidy, Roberto Burle Marx, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas. Mas sem esquecer, naturalmente, as minhas memórias de infância: tanta ventania, tantas águas, a Bacia do Prata, a Bacia amazônica, oito mil quilômetros de costa, navios etc.

Paulo Mendes da Rocha [1]


Aproximação
A primeira vez que cheguei estava deserto. As barracas que (criminosamente) permanecem sob o vão ainda que não seja dia de feira também vazias. “Por onde entramos?”, me perguntaram. Mesmo não sabendo, fomos levados à entrada como a água encontra o caminho do ralo numa banheira.

O caminho revelou uma complexa paisagem, cheia de níveis, escadas, rampas, guarda-corpos, vazios, espelhos d’água.

Próximo ao maior dos espelhos d'água – cujo perímetro é perto da divisa do terreno, e por isso é mar (de horizonte semi-infinito) – surgia a proa de um navio, que se debruçava sobre a cota mais baixa do terreno.


Já no nível mais baixo, era a lateral da proa que indicava, por fim, a entrada. Na porta, a surpresa: o edifício do museu esteve sempre ali, escondido nos níveis. Eles eram o museu. Ou melhor: o museu, também cheio de níveis ligados por rampas e inclinações no piso, formava a paisagem de cima.

Penumbra
Neste dia, o museu estava vazio também. Nenhuma exposição. Mesmo com as luzes apagadas, me aventurei porta adentro. Ninguém me impediu. Pouco antes de não conseguir enxergar mais nada, uma claraboia surgiu por ali, quebrando a escuridão. Em dias normais, provavelmente haveria embaixo dela uma obra de maior destaque.

Me perguntei se alguma vez Paulo Mendes da Rocha imaginou o museu assim, apagado. E seus visitantes vagando pela escuridão até, de repente, encontrarem uma dessas claraboias-guias. Voltariam a vagar cegamente até encontrar outra (e assim sucessivamente, até o fim).


Pós-penumbra
Na volta, tendo cruzado a porta de saída, de novo o deserto (que, agora sabia, possuía rio, navio e mar). E a claridade, refletida no concreto do piso e da construção (e desconfortável para os olhos pós-penumbra), os faria lembrar daquele lampejo de luz que avistaram no subsolo.

Neste percurso, pareceu-me que o arquiteto concebeu seu projeto traçando, num espaço tridimensional, diversas linhas quebradas que se cruzam e se completam.

E pensei no detalhe. Não aquele construtivo, que mostra como a cobertura consegue vencer tamanho vão livre, mas o detalhe que “usamos para para enfocar, para gravar uma impressão, para lembrar”, como diz o crítico literário James Wood [2]. O detalhe ao qual, por algum motivo, nos prendemos, e que nos ensina a notar melhor a vida – que é cheia de detalhes, “mas de maneira amorfa”, completa o teórico.

Mesmo ofuscado na volta, aquela proa me fez lembrar das diversas proas espalhadas pela cidade (esses desníveis de São Paulo que poucos aproveitam, poucos se debruçam sobre eles).

Lembrei que às vezes não precisamos mesmo de setas, palavras, totens, ou indicações tão claras. E do prazer de descobrir, por si só, uma construção.

Vi ainda a delicadeza de um fino guarda-corpo metálico envolvendo aquela sólida construção de concreto. E acho que isso prescinde de adjetivos.

foto © Nelson Kon


notas
[1] Rosa Artigas (org.), Paulo Mendes da Rocha – vol. 2 (projetos de 1999 a 2006). São Paulo: Cosac Naify, 2007.
[2] James Wood, Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

30 de mar. de 2011

"A ARQUITETURA PRECISA DESSE OLHAR ESTRÁBICO PARA SER ENTENDIDA CABALMENTE"

"Poucas disciplinas têm maior impacto nas transformações da cultura, da vida social e econômica que a arquitetura. E, no entanto, as versões mais habituais de sua crítica e historiografia têm se empenhado em fazer dela um universo ensimesmado, esotérico, perdendo toda relação complexa com o mundo. Uma dupla perda, na verdade: não só daquilo que a arquitetura oferece como marco material e simbólico na orientação da sociedade no tempo e no espaço, mas também da dimensão propriamente cultural que adensa a disciplina e faz dela um termômetro tão sensível dos conflitos de sua época.

Warchavchik: Fraturas da vanguarda busca, em primeiro lugar, repor essas pontes, reconstruir os mais diversos contextos em que a arquitetura se intersecta e vai ganhando inteligibilidade; busca encontrar um novo lugar para o historiador da arquitetura como historiador da cultura. Mas um lugar que, por sua vez, também permite indagar melhor o mais especificamente arquitetônico, já que, heterotópica por excelência, a arquitetura precisa desse olhar estrábico para ser entendida cabalmente."

[Adrián Gorelik, "Apresentação" a José Lira, Warchavchik: Fraturas da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 21.]

29 de mar. de 2011

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