25 de mai. de 2011

DESCALÇO

Chegamos à tarde. Paramos o carro junto ao alto muro de pedra. De baixo eu não vi, não imaginei. Alguns passos por um caminho de terra e, quando percebi, estávamos na sala, e então na cozinha. O Mario Fraga insistiu que tomássemos logo o sorvete de cupuaçu para não derreter. Estava mesmo no ponto. Acho que foi nessa hora que ele colocou Villa-Lobos pra tocar.

Na cozinha devoramos o sorvete comprado na lendária Tacacá do Norte. Das prateleiras-muro-de-contenção o Mario trazia copos, talheres etc. Ali, incrustados no talude de pedra, estavam o fogão, a geladeira industrial, a pia e todos os utensílios. A cozinha, estômago da casa como querem alguns, vivia colada à terra.














A entrada foi sutil por duas razões: a porta de correr de vidro; e o barro. Principalmente o barro: todo o piso estava cheio dele. Não é que estivesse sujo, as marcas são de anos e por sorte nunca saem nas limpezas. Melhor assim.

A casa toca tão delicadamente o terreno que se torna de barro também. Do auge desta constatação – após sair e andar pelo terreno, voltar à casa, sentar na sala-ateliê, ir até a varanda, voltar à sala – senti uma súbita vontade de tirar os sapatos, ficar descalço ali.

A instrução divina para Moisés, antes que ele enfrentasse o faraó e conduzisse toda aquela gente Mar Vermelho afora, foi: “Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é terra santa” [1]. Para o futuro líder do povo judeu, retirar as sandálias significava respeito, sim, mas também era um modo de sentir melhor aquela terra que, agora sabia, era santa.

Guardadas as devidas proporções, acho que ouvi algo parecido. Não prevejo mar vermelho algum pra mim, menos ainda arguições com faraós. Ainda assim, meio sem jeito e sem que ninguem visse, tirei por um momento o chinelo e pisei nas placas manchadas do chão.




















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[1] Êxodo 3, 5.
[2] O projeto da casa-ateliê é de Mario Fraga e Carla Juaçaba.
[3] Fotos retiradas do excelente Entre.

1 de mai. de 2011

EDIFÍCIO ESTRELA

"Eu li – logo vou avisando – que os verbos bin, ou ser, e bauen, construir, eram um só no alemão arcaico. Eu li. Digamos, por uma questão de prudência, que ambos têm apenas a mesma origem etimológica, mas arcaica ainda, ou, enfim, são aparentados de alguma forma distante (no mínimo, têm menos de seis letras e começam com b, e para o leigo isso já implica semelhança que chegue). Sem falar na mistura básica entre ser e estar.

É um carma, uma existência inescapável, dinâmica e mutuamente determinante entre o entorno, a casa e a pessoa. Seja para o marginal sanguinário, cercado de metralhadoras no último barraco do morro, ou para o corrupto federal, peidando dinheiro numa cobertura maravilhosa, o carma vale. Aplica-se ao povo brasileiro, cujos extremos da pirâmide social acabei de citar, mas é sem dúvida um fenômeno humano.

Aparece em conjuntos decorativos, explicitado, ou em pequenos detalhes, nas desimportantes seleções cotidianas, quase imperceptíveis; por exemplo a ordem dos livros numa prateleira. Surge nas sombras, no efeito da lâmpada que acende e apaga, nos propósitos arquitetônicos, nos limites humanos, na filosofia de vida, no espírito da época. É um trânsito sutil, lento e poderoso.

Não por acaso, para mim e Virgílio, todo o bairro de Ipanema nasceu à luz do prédio onde morávamos. Prudente de Moraes, 765, entre Montenegro e Joana Angélica. A cidade e o mundo vieram depois. Não por acaso, também, o Estrela de Ipanema impregnou-me de sua urgência vital. Defendia a linha reta como a melhor maneira de unir dois pontos. Jamais como separadora de planos. [...]

O Estrela de Ipanema também afetou bastante a Virgílio. Chego lá."


[Rodrigo Lacerda, Vista do Rio. São Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 14-15. A referência é ao edifício Estrela de Ipanema, projetado por Paulo Casé em 1970.]


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