30 de set. de 2011

ASTRONAUTAS EM ÍTACA

Indo para o Museu da Casa Brasileira ou simplesmente saindo de algum restaurante no Itaim, há quem note um objeto curioso no horizonte edificado: uma construção em forma de bola. Mas eu nunca imaginaria que aquela esfera é uma casa em constante transformação, que guarda em si uma história própria e longuíssima. Digna de livro, na opinião de Hans Ulrich Obrist que, junto com Rem Koolhaas, visitou a casa recentemente. O arquiteto holandês ainda chegou a afirmar que aquela tinha sido a experiência arquitetônica mais forte que tivera nos últimos dez anos.

Tal livro poderia começar com a história de um arquiteto que estava incomodado por fazer apenas “arquitetura escultórea” e decide fechar o próprio escritório para se dedicar a um projeto apenas: as casas-bola, concebidas para existirem como um sistema de casas-geminadas formando um edifício – o qual, pelo espaço entre as esferas, conferiria transparência no espaço construído da cidade. Isso foi o que Eduardo Longo me disse.

De forma extremamente gentil, com perspicácia e – por que não – muita coragem, ele me contou que antes da Bola já tinha a parte de baixo de sua residência-escritório. Nela, fez experimentos de liberar o térreo, tornando-o uma passagem entre as duas ruas paralelas (ficou assim por quinze anos!), mais tarde uma espécie de galeria com lojas e restaurantes, e hoje sedia a escola de informática de seu filho. Por fim, resolveu construir o que seria apenas um protótipo: “Eu achava que seria um velho milionário fazendo casas-bola pelo mundo”.














“Gosto muito de construir”, confessou também ele, e é claro que eu já tinha percebido. Fiquei realmente emocionado com isso: sua casa é seu espaço de experimentação, ele constrói, reconstrói, acrescenta, derruba. Mais recentemente comprou um segundo terreno, que chega até a terceira rua da quadra, onde criou um “jardim suspenso” com um espelho d’água (a diversão dos netos) – o qual, como tudo que já fez, envolve uma projeção numa escala maior. Longo queria que os estabelecimentos vizinhos investissem em estruturas assim também, conformando uma rede de jardins suspensos que seriam conectados por passarelas elevadas (ele inclusive já deixou seu trecho construído).

“Naquela época” (isto é, quando a bola foi construída), “o homem tinha acabado de pisar na Lua. Achei que isso fosse mudar completamente a arquitetura.” Com seu andar firme e ao mesmo tempo flutuante, me mostrou os espaços da casa-bola em si, e o que vi era uma verdadeira paisagem lunar, cheia de buracos dando forma a cômodos inteiros, pias, vasos sanitários, geladeira e armários.

Para finalizar a estrutura da cama de casal, disse-me, ele próprio torceu o ferro, ajustando-o melhor ao tamanho do colchão e do quarto exíguo. Foi então que percebi: embora a intenção inicial fosse fazer uma casa pré-fabricada, modelo que (mesmo de dimensões menores que o projeto inicial) seria reproduzido, aquela é uma casa, também, feita ao modo de um joão-de-barro.

Não à toa seu interior é tão parecido com a casa do artista uruguaio Carlos Páez Vilaró, em Punta Ballena. Diz-se que ele a foi construindo aos poucos, assumindo a semelhança com o procedimento do tal pássaro. Não sendo arquiteto, ia moldando com as próprias mãos a massa da qual a casa é feita, conforme crescia a família e apareciam as necessidades. E dava nomes aos ambientes: “costanera para mi hermano Miguel”, “sala Pablo Neruda” etc.


















O interior da casa-bola também se parece àquele das casas mediterrâneas na Grécia; mas aqui não há encostas nem mar onde se debruçar. Soube que seu exterior foi de diversas cores: inicialmente azul para mimetizar com o céu (“a ideia era que a arquitetura desaparecesse”), depois branca com o escorrega vermelho (“quando comecei a envelhecer, esse era eu de cabelos brancos com a língua para fora”) e agora está num tom prateado. Eduardo me disse que, após sua residência, não fez nada “tão brilhante” quanto ela, em todas suas perspectivas, como casa e como cidade que propõe.

Essa cidade utópica que de certa forma Longo imaginou lembra Ítaca, imortalizada no poema homônimo de Konstantinos Kaváfis. Ítaca é a cidade da utopia, para a qual se viaja continuamente, sem nunca se chegar. Para o poeta, contudo, isso não representa um problema, pois o que importa é a viagem em si:

"Tem todo tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim,
Rico de quanto ganhaste no caminho,
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
E agora sabes o que significam Ítacas." [1]

Se o projeto maior dos edifícios e da cidade-bola permaneceu na vontade, a resposta do experiente Longo é morar em sua própria utopia que, tal qual Ítaca, como busca, torna-se um lugar em si: sua casa, em última instância, moldada e transformada ao longo dos anos.















__________

*A Casa-Bola (São Paulo, 1978) é projeto de Eduardo Longo.

[1] Konstantinos Kaváfis, Poemas [trad. José Paulo Paes]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, pp. 118-19.

26 de set. de 2011

FAXINA

Um porteiro eletrônico ao lado do trilho do bonde, na rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa: ali, sob um sol muito quente, esperei alguns minutos até que o portão fosse aberto. “É só subir a rampa até o fim?”, perguntei, e parei o carro ao lado de outro que vi, imaginando ser ali a entrada principal. “Não, pode subir mais, faz a volta por trás!” gritou alguém lá de cima. A subida traçava um giro pelo terreno e pela casa.

Era dia de faxina e eu não sabia. Na cozinha, entre baldes de água com sabão, disseram-nos para subirmos e falarmos com a Andrea: foi ela que enfim nos recebeu, a esbaforida (e simpaticíssima) empregada-chefe da casa, pedindo mil desculpas pela bagunça e dizendo que se soubesse antes teria avisado (sexta à tarde não é um bom dia, limpam tudo antes que chegue o fim de semana). Eu disse que não tinha o menor problema, não queríamos atrapalhar, e o que veio a seguir foi inacreditável.

Na sala, o maior cômodo da casa, com aquela vista impressionante do Rio (para a Baía de Guanabara, numa ponta, e para o centro da cidade mais a Ponte Rio-Niterói, na outra), ela nos fez uma verdadeira apresentação da casa. Ali estava o escritório, bagunçadíssimo pois virara depósito temporário dos pertences de algum parente do dono (para nós isso significaria acesso impedido), e do outro lado o “bloco” dos quartos, lá embaixo a piscina, a casa do caseiro etc. Nosso horário semi-indevido também não nos permitiria conhecer os quartos, pois algumas filhas já tinham chegado.

Eu girava confuso com as explicações e comentários da Andrea que, talvez para se desculpar pela impossibilidade de me mostrar os quartos, trouxe umas quatro revistas, nacionais e estrangeiras. “Aqui você pode ver tudo”, e foi explicando que os “brises de madeira” corriam lateralmente, havia um corredor unindo todos os quartos, “a laje [era] dupla para ficar mais fresco”. Ela usava com precisão alguns termos que, sinceramente, eu achava que só arquitetos ou estudantes de arquitetura conheciam.

“Você é aluno do Angelo? Conhece ele?”: no fim da breve introdução ela revelou que conhecia bem o arquiteto. Esqueci de dizer: o começo da conversa tinha ficado a meu cargo, com a pergunta de como era trabalhar numa casa daquelas. Mal sabia eu que, depois de dizer que era ótimo mas tinha muita poeira, calor extremo no verão e frio intenso no inverno, viria aquele tour arquitetônico, ainda na sala, que terminou com a informação de que quase ninguém ficava naquele cômodo – para ver TV era preciso colocar um pano preto enorme nos vidros.

A esta altura eu nem precisaria ter perguntado se ela estava acostumada a receber visitas interessadas na arquitetura da casa. “Incomum é serem só duas pessoas, outro dia veio um grupo de 79 alunos estrangeiros!” Começamos a percorrer as áreas visitáveis. A piscina também acumulava muito pó (imagine, tinha sido limpa na manhã do mesmo dia!); os terraços do bloco dos quartos e do escritório, quase nunca usados; a madeira da porta que resistia a sol e chuva; o belo jardim por entre os vazios da casa (depois que saí soube ser do Chacel), que precisou ser cercado por um arame elétrico, para impedir o cachorro de destruir as plantas.

Terminado o tour, fomos andando por nossa conta. Eu já não estava mais confuso como antes, agora a casa tinha assentado em mim e compreendi. Tendo seus “setores” separados em blocos ou partes, ela vai se acomodando pelo terreno, como um gato faz em qualquer superfície que escolha para tirar um cochilo. No ponto mais alto do morro de Santa Teresa, os quartos encontraram um lugar, o escritório outro, a cozinha unindo tudo e a sala como um mirante para a paisagem e para a própria casa, vigiando-a continuamente.














Tudo o que a Andrea – a quem dedico este texto – disse, e a forma como o fez, tudo o que vi, revelam uma grande contradição. Rendo-me à elegância extrema desta casa, como aqueles jovens poetas mexicanos rendiam-se e reuniam-se ao redor de Auxilio Lacouture, a personagem-narradora de Roberto Bolaño em Amuleto: mesmo sabendo que ela esconde por trás da mão um sorriso desfigurado. Auxilio, que quando falava colocava uma mão em frente à própria boca, autointitulava-se a mãe da poesia mexicana, dando conselhos, acolhendo e trabalhando para vários daqueles jovens poetas. Ela ficou famosa por ter resistido à invasão de tropas do exército no campus da Universidade Nacional Autônoma do México, sozinha, sentada dentro do banheiro.

A Casa em Santa Teresa congrega em si uma tradição paulista específica de projeto, da qual muito tem se falado no meio acadêmico carioca (que carece de escola, tradição de prancheta), ultimamente. Ela resistiu e por isso nos aconselha e auxilia, mas esconde por trás das mãos aquilo que as fotos oficiais não mostram: a lixeira laranja próxima à cozinha; o pano preto para cobrir os vidros da sala; o varal preso no pino de aço (espécie de conjunto parafuso-rosca gigante) embaixo do bloco dos quartos; a cortina de box necessária para vedar o vento frio que deve passar pelo painel de madeira, no banheiro do caseiro.


























O livro de Bolaño termina com um longo sonho de Auxilio, no qual ela vê jovens latino-americanos descendo por um vale, que acaba num precipício. Ela sabe que eles cairão, mas ainda assim os ouve cantar. Desço pela rampa de volta à Santa Teresa, depois a Glória e o Aterro do Flamengo, até chegar de volta em casa. Ou teria sido um sonho?



__________

* A Casa em Santa Teresa (2008) é projeto de Angelo Bucci | SPBR Arquitetos