11 de abr. de 2011

NA EUROPA A CASA DO HOMEM RUIU

Lina Bo Bardi

"A casa do Homem ruiu; na Itália, ao longo da Aurélia e da Emília, na Sicília e na Lombardia, na Provença, na Bretanha; a casa do Homem ruiu na Europa. Não pensávamos que ela fosse desaparecer assim; era muito 'segura', era um 'baluarte', havia alguma coisa mais 'firme' do que a casa? Há anos estava ali, cada ano sofria uma mudança, era a filha que se casava, uma nova geração que vinha, desaparecia a poltrona de veludo com franjas do último Oitocentos e vinha o móvel 'inglês' em mogno e cetim celeste, as lâmpadas de 'opalina' eram substituídas por grandes lampadários de metal dourado; depois, os netos quiseram fazer mudanças, quiseram renovar, segundo aquela nova moda do antigo misturado com o moderno, e o divã Luís Filipe ia muito bem com as lâmpadas modernas de ferro batido laqueadas de branco; também [com] as paredes em cimentite e os dois quadros surrealistas. Certa vez, toda a casa foi transferida para um bairro elegante, para um edifício mais moderno, e foi naquela ocasião que Francisco mandou fazer as grandes cortinas de seda verde amêndoa drapeadas segundo a moda francesa, e os estuques brancos inspirados no barroco; assim, a casa era ligeiramente 'decadente', como disse um arquiteto à la page, mas ia bem, tinha estilo, era muito admirada pelos amigos e uma revista mundana publicou-a. Certo, tinha mudado muito desde os tempos dos avós, cada um lhe havia querido dar o 'seu' toque, mas era sempre a 'nossa casa' e não ousaríamos admitir que pudesse desaparecer assim. Agora, quando relembro nossos zelos em não desmanchar uma prega do drapeado, em não alterar a simetria dos adornos, a nossa preocupação de conservar 'aquele ar' da nossa casa, aquele ar tão 'representativo', parece-me impossível não a rever mais. No ângulo do salão, à esquerda, havia o retrato da vovó; embaixo dele tínhamos mandado fazer um delicado motivo em estuque, quase um brasão, tirado de uma revista; um esculpido que escondia uma delicada luz rósea; era o nosso ângulo preferido, tinha uma vitrola de pele de serpente e um 'bar' arrumado num velho móvel 'Império'. Palavra, nunca imaginei que acabasse assim e, naquela manhã, quando a nossa casa já não existia mais, achei um pedaço de gesso branco raiado, e vi que era uma lasquinha de lâmpada rósea. Mas que estranho, que estranho que nada se visse da nossa casa tão bela, que nada tivesse ficado capaz de distingui-la das outras! Era tudo cinzento, tudo pó, tudo igual aos outros montes cinzentos que também haviam sido casas, mas certamente muito menos bonitas do que a nossa.

Sim, não pensávamos que as casas fossem assim frágeis, assim sutis, assim 'humanas', e que pudessem morrer assim. Foi então, quando esperávamos naqueles momentos de pesadelo, que as casas começassem a ruir que nos apercebemos que elas 'eram humanas', que eram o 'espelho' do homem, que eram 'o homem'. E sentimos também que era culpa nossa se morriam, nós as havíamos erguido para que fossem o espelho do nosso orgulho mais falso, da nossa incompreensão da vida e dos homens, e por culpa nossa ruíam também as pequenas casas sem culpa, as pequenas casas sem luzes róseas e sem drapeados de seda. Foi então, enquanto as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra do homem, que compreendemos que a casa deve ser para a 'vida' do homem, deve servir, deve consolar; e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano; então, compreendemos porque as casas ruíam, e ruíam os estuques, a mise-en-scéne, os cetins, os veludos, as franjas, os brasões; porque, de manhã, tudo era montinhos cinzentos desoladoramente idênticos. Na Itália, as casas ruíram, ao longo das estradas da Itália, nas cidades, as casas ruíram; na França, as casas ruíram, na Inglaterra e na Rússia; na Europa, as casas ruíram. E, pela primeira vez, os homens devem reconstruir as casas, tantas casas no centro das grandes cidades, ao longo das estradas de campo, nos vilarejos; e, pela primeira vez, 'o homem pensa no Homem', reconstrói para o Homem. A guerra destruiu os mitos dos 'monumentos', também na casa, os móveis-monumentos não devem existir mais, também eles, em parte, entram na causa das guerras; os móveis devem 'servir', as cadeiras para sentar, as mesas para comer, as poltronas para ler e repousar, as camas para dormir, e a casa assim não será um lar eterno e terrível, mas uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer.

Na Europa se reconstrói, e as casas são simples, claras, modestas, pela primeira vez no mundo, talvez o homem haja aprendido, e na manhã seguinte àquelas noites chamejantes, sentido, sobre os escombros da sua casa, que a casa é quem a habita, é 'ele mesmo', e tiveram vergonha da sua velha casa como se tivessem mostrado em público as próprias fraquezas e os próprios vícios."


[in Silvana Rubino e Marina Grinover (orgs.), Lina por escrito. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Publicado originalmente em Rio, Rio de Janeiro, n. 92, fev. 1947, pp. 53-55 e 95.]

2 comentários:

  1. "e tiveram vergonha da sua velha casa como se tivessem mostrado em público as próprias fraquezas e os próprios vícios."
    [in Silvana Rubino e Marina Grinover (orgs.), Lina por escrito. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Publicado originalmente em Rio, Rio de Janeiro, n. 92, fev. 1947, pp. 53-55 e 95.] PERGUNTA> Quando sentiremos vergonha de onde vem a energia elétrica das nossas tomadas???

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    1. PERGUNTA> Quando sentiremos vergonha de onde vem a energia elétrica das nossas tomadas???
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