3 de abr. de 2011

O MURO

Regina Modesto Guimarães

"Tudo naquele jardim tinha sentido. E cada dia um sentido diferente. Assim o muro. Quando é que passou pela nossa cabeça que muro é uma coisa que divide? Muro era uma coisa para a gente escalar. O estupendo da infância é essa capacidade de descobrimento – cansados da nossa altura, sentíamos necessidade daqueles momentos vividos numa outra dimensão. E assim, mais altos que os homens altos, entendíamos os gigantes.

Éramos oito idades, oito temperamentos, o muro estreito. Lá em cima circulava tudo: o medo vencido, o medo invencível, o triunfo do equilíbrio, o malabarismo, a macaquice. Mas o ponto máximo de nossa felicidade era espiar para a casa do vizinho. ‘Meninos, vocês levam um tombo!’ Nós dizíamos: ‘Bom dia!’. Bom dia era uma coisa que acalmava o bom velhinho; virávamos as pernas para o lado de lá e aprosa começava. Seu Rezende era parte do nosso mundo, colônia nossa. Sempre com aquele roupão pesado, o gorro, os chinelos e a bengala. Vivia flanando no jardim e sempre dava um jeito de nos presentear com uma fruta, uma flor ou uma bala.

No meio das nossas brincadeiras incansáveis, a hora do muro era uma horinha sagrada: ‘Do portão pra dentro!’. Mamãe não admitia que ficássemos na rua daí a nossa atração pelo muro – era um pouco do lado de lá que vinha até nós. Oh! Crianças crescidas nas calçadas, reclamem um jardim! Há um mundo de poesia escondido na terra, nas folhagens, nas flores! Reclamem o direito de participação.

Nós não aprendíamos as coisas, tudo era achado, encontrado, revelado. Assim, certa vez, de cima do muro, achamos a morte na casa do vizinho: uma janela grande, aberta – janela que, sempre fechada, nunca nos tinha contado nada – ela nos mostrou o que não tínhamos visto ainda: uma pessoa morta.

O arrepio em silêncio, que imobilizou de repente a nossa curiosidade, a mistura de respeito e medo, o engasgo que foi subindo na forma de vontade de chorar – haverá no coração dessas crianças de hoje, alimentadas de revólveres de mentira, momentos de plenitude assim?

Olhamos as coroas espalhadas pela varanda, de novo olhamos, intrigados, seu Rezende deitado, quieto, morto. Estávamos de posse de um segredo, tínhamos mergulhado dentro de um mistério. Descemos o muro com cuidado, escorregando. E aquele dia foi triste."


[texto da cunhada de Lucio Costa, incluído por ele em seu Registro de uma vivência (Empresa das Artes, 1995, p. 580)]

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