23 de ago. de 2011

O VIDRO PESADO ou COMO DAR LEVEZA A UMA CAIXA DE VIDRO

















Olhando do portão de entrada, podem pensar: “ah, uma arquitetura moderna”. Ou, vendo apenas a planta baixa num livro, constatar: “vejam só, planta livre e paredes de vidro para o exterior – miesianamente perfeito, corbusianamente correto”. Mas quem sobe pela rampa e vê os pedaços de azulejos cortados e colados ao piso, quem chega no térreo e, sob o clássico pilotis, percebe o chão de placas irregulares e desencontradas, as raízes da árvore que cresce no meio do vazio central se espalhando e tomando os espaços – quem vê esse contraste construção-térreo logo percebe que não é mais um Mies, tampouco uma réplica de um Corbusier.

















Se subir pela instável escada metálica e adentrar a porta (de vidro), não terá mais dúvidas. Tal qual as raízes da árvore lá embaixo, crescem pela planta livre (e enorme) da sala objetos nordestinos, quadros da renascença, esculturas sacras, pedaços de cenários de teatro, móveis trazidos dos mais diversos antiquários, de madeira escura e detalhes trabalhadíssimos. Grudados também a esta fina teia que a aranha-Lina teceu, outros móveis (mesa de jantar, mesinhas de centro, cadeiras e poltronas) projetados especificamente para a casa por ela, nunca reproduzidos, num ato de quem diz: esta casa é minha, aqui fico, aqui construo, trabalho, esculpo, dou corda ao mundo.

















Na foto histórica, descubro que as paredes transparentes revelavam uma São Paulo sem construções e a vegetação ainda baixa do quintal. Cada planta foi escolhida a dedo e plantada pela própria Lina. Hoje, o tombamento impede a poda e a vista é para as árvores, somente – a cidade lá atrás, que também cresceu sem poda, permanece oculta. Minha vontade era fechar as cortinas, acender as arandelas e luminárias de piso (o teto liso, sem intervenções luminosas) e ter olhos apenas para aquela atmosfera que a Lina criou para si. Ser uma das inúmeras visitas que o casal recebia, fosse para adquirir uma obra de arte (Pietro também era galerista), fosse para um coquetel qualquer.

















Uma das Seis propostas para o próximo milênio de Italo Calvino foi a leveza. “No mais das vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem.” Mas esta leveza não pode ser confundida com tolice, vagueza ou preguiça: “há uma leveza do pensamento, assim como existe, como todos sabem, uma leveza da frivolidade; ou melhor, a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca. [...] A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”. [1]

Calvino – também italiano, como Lina – escreveu isso em 1985, mais de trinta anos depois da construção da Casa de Vidro. Não sei quando o jardim, o térreo, o acúmulo de móveis e objetos começaram a acontecer. Mas parece que, com eles, Lina e Pietro tornavam sua rígida casa – que paradoxo, uma casa de vidro pesada – mais leve. À linguagem e à estrutura modernas, estes elementos retiravam peso.

















O casal Bardi, contaram-me, morou ali até o fim da vida. E Pietro costumava ir andando todo dia para seu trabalho, no Masp – do Morumbi à Paulista, mesmo na terceira idade.

Quem olha de novo para a casa, já de saída, flutua, leve, junto com ela.


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[1] Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 15, 22 e 28.

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