26 de set. de 2011

FAXINA

Um porteiro eletrônico ao lado do trilho do bonde, na rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa: ali, sob um sol muito quente, esperei alguns minutos até que o portão fosse aberto. “É só subir a rampa até o fim?”, perguntei, e parei o carro ao lado de outro que vi, imaginando ser ali a entrada principal. “Não, pode subir mais, faz a volta por trás!” gritou alguém lá de cima. A subida traçava um giro pelo terreno e pela casa.

Era dia de faxina e eu não sabia. Na cozinha, entre baldes de água com sabão, disseram-nos para subirmos e falarmos com a Andrea: foi ela que enfim nos recebeu, a esbaforida (e simpaticíssima) empregada-chefe da casa, pedindo mil desculpas pela bagunça e dizendo que se soubesse antes teria avisado (sexta à tarde não é um bom dia, limpam tudo antes que chegue o fim de semana). Eu disse que não tinha o menor problema, não queríamos atrapalhar, e o que veio a seguir foi inacreditável.

Na sala, o maior cômodo da casa, com aquela vista impressionante do Rio (para a Baía de Guanabara, numa ponta, e para o centro da cidade mais a Ponte Rio-Niterói, na outra), ela nos fez uma verdadeira apresentação da casa. Ali estava o escritório, bagunçadíssimo pois virara depósito temporário dos pertences de algum parente do dono (para nós isso significaria acesso impedido), e do outro lado o “bloco” dos quartos, lá embaixo a piscina, a casa do caseiro etc. Nosso horário semi-indevido também não nos permitiria conhecer os quartos, pois algumas filhas já tinham chegado.

Eu girava confuso com as explicações e comentários da Andrea que, talvez para se desculpar pela impossibilidade de me mostrar os quartos, trouxe umas quatro revistas, nacionais e estrangeiras. “Aqui você pode ver tudo”, e foi explicando que os “brises de madeira” corriam lateralmente, havia um corredor unindo todos os quartos, “a laje [era] dupla para ficar mais fresco”. Ela usava com precisão alguns termos que, sinceramente, eu achava que só arquitetos ou estudantes de arquitetura conheciam.

“Você é aluno do Angelo? Conhece ele?”: no fim da breve introdução ela revelou que conhecia bem o arquiteto. Esqueci de dizer: o começo da conversa tinha ficado a meu cargo, com a pergunta de como era trabalhar numa casa daquelas. Mal sabia eu que, depois de dizer que era ótimo mas tinha muita poeira, calor extremo no verão e frio intenso no inverno, viria aquele tour arquitetônico, ainda na sala, que terminou com a informação de que quase ninguém ficava naquele cômodo – para ver TV era preciso colocar um pano preto enorme nos vidros.

A esta altura eu nem precisaria ter perguntado se ela estava acostumada a receber visitas interessadas na arquitetura da casa. “Incomum é serem só duas pessoas, outro dia veio um grupo de 79 alunos estrangeiros!” Começamos a percorrer as áreas visitáveis. A piscina também acumulava muito pó (imagine, tinha sido limpa na manhã do mesmo dia!); os terraços do bloco dos quartos e do escritório, quase nunca usados; a madeira da porta que resistia a sol e chuva; o belo jardim por entre os vazios da casa (depois que saí soube ser do Chacel), que precisou ser cercado por um arame elétrico, para impedir o cachorro de destruir as plantas.

Terminado o tour, fomos andando por nossa conta. Eu já não estava mais confuso como antes, agora a casa tinha assentado em mim e compreendi. Tendo seus “setores” separados em blocos ou partes, ela vai se acomodando pelo terreno, como um gato faz em qualquer superfície que escolha para tirar um cochilo. No ponto mais alto do morro de Santa Teresa, os quartos encontraram um lugar, o escritório outro, a cozinha unindo tudo e a sala como um mirante para a paisagem e para a própria casa, vigiando-a continuamente.














Tudo o que a Andrea – a quem dedico este texto – disse, e a forma como o fez, tudo o que vi, revelam uma grande contradição. Rendo-me à elegância extrema desta casa, como aqueles jovens poetas mexicanos rendiam-se e reuniam-se ao redor de Auxilio Lacouture, a personagem-narradora de Roberto Bolaño em Amuleto: mesmo sabendo que ela esconde por trás da mão um sorriso desfigurado. Auxilio, que quando falava colocava uma mão em frente à própria boca, autointitulava-se a mãe da poesia mexicana, dando conselhos, acolhendo e trabalhando para vários daqueles jovens poetas. Ela ficou famosa por ter resistido à invasão de tropas do exército no campus da Universidade Nacional Autônoma do México, sozinha, sentada dentro do banheiro.

A Casa em Santa Teresa congrega em si uma tradição paulista específica de projeto, da qual muito tem se falado no meio acadêmico carioca (que carece de escola, tradição de prancheta), ultimamente. Ela resistiu e por isso nos aconselha e auxilia, mas esconde por trás das mãos aquilo que as fotos oficiais não mostram: a lixeira laranja próxima à cozinha; o pano preto para cobrir os vidros da sala; o varal preso no pino de aço (espécie de conjunto parafuso-rosca gigante) embaixo do bloco dos quartos; a cortina de box necessária para vedar o vento frio que deve passar pelo painel de madeira, no banheiro do caseiro.


























O livro de Bolaño termina com um longo sonho de Auxilio, no qual ela vê jovens latino-americanos descendo por um vale, que acaba num precipício. Ela sabe que eles cairão, mas ainda assim os ouve cantar. Desço pela rampa de volta à Santa Teresa, depois a Glória e o Aterro do Flamengo, até chegar de volta em casa. Ou teria sido um sonho?



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* A Casa em Santa Teresa (2008) é projeto de Angelo Bucci | SPBR Arquitetos

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