20 de jun. de 2012

brasília barroca

"Vista do avião, a área de Brasília, situada como por acaso entre as infinitas ondulações horizontais do planalto (mas, ao que parece, esse local foi escolhido após cálculos muito precisos como o mais central do Brasil), faz pensar na exposição de uma grande quantidade de bistecas sangrentas no balcão de um açougueiro. Quadrados mais ou menos vermelhos, segundo a época mais ou menos recente das terraplanagens, revelam as áreas edificáveis que foram arrancadas à mata tropical. O avião demora a aterrissar porque a pista não está livre – caso não raro neste país com poucas estradas e poucas ferrovias, mas de aeroportos congestionados –, e dá voltas e voltas, planando ao redor de Brasília. Aí está a chamada cidade livre, um pulular de retângulos, isto é, de barracas alinhadas ao longo de um estradão imenso: aqui se aglomeram, como no faroeste à época da febre do ouro, os traficantes vindos de todos os lugares (mas o ouro é o dinheiro que o Estado brasileiro gasta em Brasília); aí estão os prédios ainda escassos, espigados aqui e ali como peças de um dominó em desordem; eis a meia-lua azul do Lago artificial, entre o vermelho sanguíneo dos desterramentos e o amarelo ictérico da mata; eis as complicadas aortas negras desse coração de cimento, ou seja, o sistema viário projetado por Lucio Costa, ao que parece o mais moderno do mundo; aí está, tomando todo o entorno de Brasília, o fervilhar maligno e ingrato da mata que, como sabemos, se estende por milhares de quilômetros, e em cujo centro a cidade precipitou-se como um meteorito ardente, sacrificando a sangue a terra árida. Do alto, a vontade que está na origem de Brasília se revela claramente: criar uma capital abstrata para um país imenso, cuja unidade também é um milagre de abstração linguística e étnica". [...] "O pôr do sol nos alcança ao final da visita apressada a Brasília com uma repentinidade traidora. Um momento antes o sol preenchia com sua luz vital as pistas asfaltadas e desertas, os desterramentos sanguíneos, o bosque empoeirado; um momento depois, eis que a sombra da noite subtrai aquela vitalidade do ar que escurece e, de repente, enquanto corremos de volta ao aeroporto, ultrapassados e seguidos por vários caminhões apinhados de operários que retornam dos canteiros, a atmosfera em nosso redor se faz estranha e hostil." Alberto Moravia, "Brasília barroca", 1960

Um comentário:

  1. Vendo Brasília por este ângulo, não consigo ver Brasília pelo ângulo que vejo... “º~º” Estaria eu cego como uma pedra? Miguel, prazer estar aqui em seu blog, brother. Com tempo, venha rir e chorar com DOROTÉIA, a passiva fumante. º~º http://jefhcardoso.blogspot.com Abraço!

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