5 de jun. de 2011

OS 70% DA CASA (E O QUE FALTOU)

Visitar residências “de arquitetura assinada”, mas ainda utilizadas como moradia, é o que tenho me proposto ultimamente. Quando se trata de casa projetada e previamente habitada pelo Vilanova Artigas, a coisa ganha um peso enorme.

Ao entrarmos, não me vendo com a câmera nas mãos, o dono da casa se espantou: “Você não trouxe?”. Sim, estava comigo, era o celular mesmo. Descobrindo isso, me instou a tirar a “foto clássica”, aquela “que todo mundo tira”. Preferia antes percorrer um pouco os espaços da casa mas, de qualquer modo, coloquei-me na posição determinada – em cima da raiz de uma árvore – para fazer o clique. Eis o resultado.













Como se vê, o sol da manhã aparecia em raios filtrados pelas nuvens. Entramos, guiados pela inclinação da cobertura (no ponto mais baixo fica a porta de entrada). “Daqui, você vê 70% da casa”, disse-me o proprietário, do meio da sala. Minha visita teve de ser rápida; acho que durou no máximo quinze minutos. De fato, essa rapidez e essa clareza (o percentual que podia ser apreendido de uma só vez era mesmo grande) diziam muito a respeito de certo ideal moderno, herança bem presente aqui. A triangulação entre sala, varanda e estúdio (acima dos outros) é perfeita e não deixa dúvidas.

Antes que a visita acabasse, contudo, subi ao estúdio e dali tive a melhor visão de todas. Em um só corredor, a casa: estúdio, escada, sala, beira da cozinha e portas dos quartos. Estes últimos não estavam nos 70%. Pedi para ir até eles; cozinha, tudo bem, mas rapidinho pois estava bagunçada. Quartos, não; filho dormindo ainda.

















Volto aos raios de sol filtrados pelas nuvens, de fora. Setenta porcento de claridade. Mas, e os outros trinta que não passavam pelo filtro da visita? A casa ficou menos moderna, assim. Menos clara, mais misteriosa.

Foi o Jacques Tati que caricaturou a casa moderna, em Mon Oncle. No livro homônimo, de Jean-Claude Carrière (inspirado no filme), o narrador é o menino, sobrinho do monsieur Hulot, cujos pais adquirem a casa do futuro:

“Minha mãe e a casa dela... Uma casa que não tinha segredos para ninguém, que era visitada feito um museu, ou como uma feira moderna. Às vezes eu me pergunto se as linhas retas que nos rodeiam não endurecem o nosso coração.” [1]

As frases afiadas não ferem apenas o movimento moderno, mas também a mim, visitante e escrevente. Se percorria a casa como museu, era hora de ir mesmo, quinze minutos bastavam. Aqueles dois ambientes que permaneceram ocultos me diziam: “Vá com calma, isso daqui não é uma exposição. Tem louça suja, gente dormindo”. Se sonhava com linhas retas ou curvilíneas, não sei. Esta casa, diferente da outra, mantinha os seus segredos como quem tenta manter um posto na guerra. E resiste.


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[1] Jean-Claude Carrière, Meu tio. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

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